Berg Castello

O nome da montanha é de uma coincidência poética impressionante: “monte” sugere a conformação geográfica de uma elevação imponente; “castelo” alude a fortaleza, à idéia de solidez intransponível.

Monte Castello é uma elevação de 977 metros de altura fincada no maciço acima do município de Gaggio Montano, localizado ao lado sul da parte dos Apeninos que separa o vilarejo montanhês da cidade industrial de Bologna, no vale do rio Pó[1].

As cartas topográficas alemãs não citam o nome da montanha. Nos mapas militares da Wehrmacht, a elevação é indicada simplesmente como “101/19”. Em certa literatura, tal fato foi destacado como sinal da insignificância do monte para os defensores alemães, a partir do que se infere que “Monte Castello” nunca existiu para os adversários da FEB na Itália. É uma afirmação perniciosa. O desembarque em Omaha Beach custou caro para a 1ª Divisão de Infantaria Americana, especialmente no setor Easy Red – embora, para os alemães, o local tenha sido designado simplesmente como Wiederstandnest 62 – o ponto de resistência número 62 da praia. É absolutamente natural que exércitos diferentes adotem jargão distinto para denominar porções de terreno, e a localidade de Abetaia, importante nos combates narrados a seguir, é exaustivamente citada na documentação alemã. Assim, é sabido que os nomes das paragens empregados pelos habitantes das regiões onde se travaram os combates fossem amplamente conhecidos pelos combatentes de ambos os lados. De qualquer maneira, nas ordens de operações, os objetivos dos ataques brasileiros eram designados pelas cotas do terreno e nomes de aglomerações de casas: nenhuma companhia de fuzileiros brasileira jamais recebeu ordem de “atacar Monte Castello”, mas de alcançarem objetivos como as cotas 887, 977, Zolfo e Cá Guidellini – todos localizados em “compartimentos” distintos da montanha – o Monte Castello tem quatro encostas bem divisíveis entre si, três das quais eram alvo dos brasileiros durante seus ataques. Em função de um erro ortográfico nos mapas italianos que deram origem às cartas topográficas do V Exército, os soldados brasileiros adotaram o nome de “Vitelline” para as casas de Guidellini – apesar da denominação abrasileirada, o nome correto será empregado, embora não haja um único documento ou livro sobre a FEB que não reproduza a corruptela causada pelos cartógrafos[2]. De qualquer forma, o nome de Monte Castello era conhecido entre os integrantes da 232ª DI encarregados de defender os morros acima de Gaggio Montano: o diário de um oficial alemão capturado, traduzido e publicado no periódico Blizzard da 10ª Divisão de Montanha cita o Castello nominalmente, além do Torraccia, Belvedere e outras elevações[3].

Do vale do rio Silla, que corre paralelo à Rota 64, começa a encosta ascendente pontilhada de pequenas propriedades rurais, que se perde em dezenas de quilômetros de extensão ao longo da estrada.

A primeira seqüência da subida não é particularmente íngreme, mas o caminho é extenso e resulta em cansaço para quem precisava ascender a pé, com o fardo dos equipamentos, armas e munições. Em linha reta, o percurso tem cerca de três quilômetros, mas as trilhas de montanha asfaltadas que serpenteiam encostas acima aumentam consideravelmente a viagem.

O olhar profissional do Marechal Kesselring sabia exatamente que aquela porção dos Apeninos que se estende ao sul de Bolonha seria o local adequado para tentar deter o avanço aliado mais uma vez na Itália. Quando um militar experiente esquadrinha um terreno com a visão, as informações topo-geográficas são processadas de maneira diferente do que faz a mente de um civil. A atenção se volta para os obstáculos naturais, os campos de tiro, os ângulos mortos e as mais prováveis vias de acesso, onde serão instaladas as defesas mais sólidas[4].

Monte Castello não é a elevação mais alta do maciço que paira sobre Gaggio Montano. O Monte Belvedere tem maior altitude – isso, entretanto, não significa que a utilidade tática do Castello fosse insignificante: desde os momentos iniciais da campanha da Itália, os alemães haviam constatado que elevações de 200 ou até 100 metros de altura podiam ser extremamente eficazes, desde que oferecessem bom campo de tiro para as armas automáticas e bons pontos de observação para a artilharia[5]. Monte Castello se destaca em posição avançada dentre todo maciço, proporcionando visão dominante sobre Porretta Terme e boa parte da Rota 64. Embora as encostas do morro sejam íngremes em vários pontos, os platôs que possibilitam a aproximação são planos, permitindo a rápida reação da guarnição sobre uma tropa atacante, e quase nenhuma defesa natural para quem avança.

Pisando na Itália com bota de ferro, a ocupação alemã induziu milhares de trabalhadores civis italianos na Organização Todt, encarregada da construção das linhas defensivas que se apertavam em torno do Terceiro Reich. Os anéis sucessivos de estrangulamento das fronteiras alemãs não equivaliam em debilidade na disposição dos combatentes alemães de derramar o próprio sangue em defesa da Vaterland. Antes que os Aliados conseguissem transpor a cadeia defensiva projetada por Kesselring, a Wehrmacht estava disposta a cobrar um preço alto em vidas – mesmo que isso significasse um morticínio dantesco entre os soldados alemães e seus camaradas do Exército Republicano de Mussolini[6].

Entre a avalanche de recursos dos Aliados e a barreira de concreto, pedras e arame farpado construída pelos alemães estavam os civis italianos.

Gaggio Montano fica a meio caminho entre o vilarejo de Silla e a crista das elevações que custaram tantas vidas entre fins de 1944 e o início de 1945. Acima de Silla e Gaggio, a zona ocupada pelo IV Corpo de Exército apresentava terreno extremamente acidentado e distância maior de Bolonha do que o Passo della Futa. Gaggio Montano situa-se a aproximadamente trinta quilômetros de Bolonha. Os maiores esforços Aliados foram, portanto, despendidos no setor sob a responsabilidade do II Corpo de Exército (Major General Geoffrey Keyes)[7].

Sobre Gaggio Montano paira um portentoso conjunto de montanhas, cujas extremidades são delimitadas pelo Monte Belvedere a leste e o Monte della Torraccia a oeste.

Adiante do casario que demarca a porção central do município, o terreno se ondula abrupta e sucessivamente, com esparsos agrupamentos de pequenas casas rústicas de camponeses batizadas com nomes pitorescos: Cá del Fabro, Cá di Toschi, Abetaia[8].

Dos últimos vilarejos para cima, há apenas casas isoladas e bosques, às vezes separados por áreas de cultivo e a ocasional igrejinha de lavradores. E, em alguns topos de montes, restos de castelos medievais e torres fortificadas.

Muitas das casas de pedras datam dos séculos XV e XVI. Algumas foram erguidas sobre fundações de construções datadas da alta Idade Média. Em alguns casos, as mesmas famílias residem nas localidades há centenas de anos. Os camponeses que projetaram a construção sólida dessas habitações certamente não pensaram que um dia elas seriam úteis como abrigos contra granadas e que muitas seriam transformadas em casas fortificadas.

Na conjunção dos maciços do Belvedere e della Torraccia, o terreno se estrangula e lança um apêndice na direção noroeste – sudeste que se alarga nesta última direção, formando o maciço de Monte Castello. Este monte é separado de La Serra e do della Torraccia por um fosso, que recebeu o nome de Malandrone.        Um riacho corta a descida pouco abaixo de Monte Castello e deságua no rio Silla, na base do vale, separando a montanha do Monte Belvedere pelo sudoeste[9].

Monte Castello é formado pela convergência de quatro grandes cristas que se unem em sua cota máxima de 977 metros de altura, cada uma criando quatro divisões bem definidas do terreno: Cá Zolfo, Fornello, Abetaia e, pelo norte, o Malandrone. No geral, as encostas das quatro cristas são escarpadas e configuram excelentes pontos de defesa.

Em alguns documentos e em depoimentos de expedicionários, há menção tanto ao “Monte Castello” quanto ao “Morro do Castello”. A suposta insignificância de um reles “morro” em comparação com um grandioso “monte”, talvez palavra mais expressiva, não pode ser tomada como sugestiva de uma tentativa de depreciar a importância daquele acidente geográfico: a expressão “Morro do Castello” era bem conhecida dos cariocas em função de uma fortificação do final do século XVI construída no Rio de Janeiro e tristemente demolida em 1921 pelo prefeito Carlos Sampaio. É compreensível que a denominação já difundida na memória coletiva dos cariocas fosse transposta ao jargão da FEB.

Não fosse uma outra fortificação, esta erigida no século XIII pelo senado bolonhês, e Monte Castello teria preservado seu nome de Monte Leone, pelo qual era conhecido durante boa parte da Idade Média. De qualquer forma “Monte Leão” também se presta a uma coincidência verbal de relevo para a FEB: o felino é o símbolo da unidade que conquistou a montanha, representado no estandarte regimental com os três ferimentos sofridos pelo General Sampaio na batalha de Tuiuti. Ainda no tempo da guerra, os mais velhos chamavam a elevação de “Monte Castel Leone”. O castelo que cedeu seu nome ao monte no entardecer dos séculos teve sua primeira pedra lançada em 1227, para garantir a tranqüilidade das caravanas de comércio que transitavam pelas regiões de Módena e Bolonha. Como outros pequenos castelos medievais, o do Monte Leone também funcionava como um entreposto, e, no seu interior, havia instalações para soldados, tabeliões, juízes e religiosos, além de uma igreja e uma muralha de 1,90m de altura, cuja grande maioria das pedras da fundação não resistiu ao impulso dos alemães em retirá-las para servir de reforço às casamatas. A elevação talvez tenha visto seus primeiros combates nas guerras de motivação religiosa entre as facções dos Guelfi e dos Ghibellini. Atravessando o tempo sem nenhum programa de preservação, pouco além de vestígios de seu traçado restava do castelo medieval quando os alemães ocuparam o morro em meados do século XX. Da igreja de San Giacomo, uma das principais construções do castelo, não restam vestígios visíveis acima do solo[10].

Saberíamos bem menos sobre Monte Castello se 1976 o geólogo bolonhês Claudio Avanzato não tivesse, de iniciativa própria, empreendido um detalhado estudo topográfico em busca das fundações dos edifícios medievais. Sem pretender com os resultados fornecer contribuições para a história militar brasileira, o jovem pesquisador acabou produzindo o que é talvez o mais rico estudo das fortificações alemãs sobre o monte – seus croquis são mais bem detalhados até mesmo do que o minucioso relatório elaborado por um oficial do Regimento Sampaio em fevereiro de 1945.

Avanzato tinha a intenção de criar um itinerário por Monte Castello para ser percorrido a pé, por onde visitantes poderiam apreciar os vestígios do castelo, que se estendiam por cerca de 600 metros, incluindo também os restos das fortificações da 232ª Divisão. Infelizmente, o pesquisador morreu ainda jovem, mas seu projeto continua: anos depois, os cidadãos de Gaggio Montano se entusiasmaram com a idéia, dando continuidade à preservação dos vestígios arqueológicos existentes no monte.

 

[1] Mascarenhas de Moraes, op. cit.

[2] Ver, entre outras, Ordem Geral de Operações da 1ª DIE, 11 de dezembro de 1944.

 

[3] Blizzard, “Kraut diary”. Número 4, volume 4, 15 de março de 1945.

[4] Jackson, W.G.F., op. cit.

[5] Graham, D.; Bidwell, S., Tug of War.

[6] Schreiber, G.

[7] Fisher Jr., op. cit.

[8] Alencar, J.U.C., op. cit.

[9]

[10] Nuèter.

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