A conferência do Passo de Futa
No dia 30 de outubro, o General Clark convocou seus comandantes de corpo e de divisões para estabelecer as novas diretrizes de operação, resultando na transferência da divisão brasileira para a zona de ação do vale do rio Reno. Mascarenhas saiu satisfeito da reunião, pois julgava que com o empenho da FEB em um setor mais central do front, os brasileiros teriam recebido uma promoção para o “primeiro team” do V Exército[1].
Desde o início de novembro, o 6º Regimento de Infantaria já substituíra tropas americanas no setor de Marano, cidadezinha que incluía posições de sinistra fama, como Montecavalloro, Torre di Nerone e Boscaccio. A maior parte do 6º RI passaria o inverno se defrontando com o inimigo nesta área de operações da divisão voltada para o leste, estando, portanto, alguns quilômetros à direita de Monte Castello, se olhadas da perspectiva brasileira.
Além dos choques de patrulhas com o 6º RI, os primeiros contatos entre a FEB e a 232ª Divisão no setor de Monte Castello e Belvedere ocorreram durante as ações de reconhecimento do 1º Esquadrão de Cavalaria. O III Batalhão do Regimento Sampaio também teve a oportunidade de experimentar o batismo de fogo antes de ser empenhado em Monte Castello, ao receber ordem de ocupar posições na Torre di Nerone entre os dias 22 e 23 de novembro[2].
Após a ordem de entrar em Gaggio Montano recebida na virada do dia 16 para 17 de novembro, o Capitão Plínio Pitaluga anotou no relatório da unidade: “logo de início ressaltou (sic) a impossibilidade de se levar os carros de reconhecimento à região, pois seriam objetivos fáceis à artilharia alemã, bastante ativa nessa ocasião e mesmo a ponte ao sul de Crociale achava-se destruída e a variante não permitia a passagem daquelas viaturas. Nessa mesma noite o 3º Pelotão penetrava em Gaggio Montano, sem encontrar elementos alemães”[3]. Neste dias, o Esquadrão estava temporariamente concedido ao Combat Command B da 1ª Divisão Blindada americana[4].
Estabelecendo ligação com a Task Force 45, nos dias 18 e 19 o Esquadrão lançou patrulhas que atraíram fogo de armas antiaéreas, morteiros e metralhadoras. Na segunda patrulha, os alemães conseguiram matar o Tenente Amaro Felicíssimo da Silveira, que foi sepultado no próprio local e constou como desaparecido por alguns meses na lista da divisão.
No dia 22 de novembro, o III Batalhão do 6º Regimento de Infantaria foi cedido ao comando da Task Force 45 para participar dos primeiros ataques naquele setor do vale do Reno. A unidade deveria atacar no esforço principal à esquerda, aprisionando ou aniquilando o inimigo. Uma vez conquistado o terreno, os brasileiros deveriam executar preparativos para consolidar suas defesas e evitar que o inimigo retomasse as posições perdidas em contra-ataques. Com o sucesso da operação americana no flanco esquerdo, o III Batalhão do 6º, comandado pelo Major Silvino, teria a missão adicional de lançar nova ofensiva em direção aos montes della Torraccia e Terminale, que ficam atrás de Monte Castello[5].
Os fuzileiros do III Batalhão receberam a incumbência de atacar por um corredor mais ou menos plano, delimitado em suas extremidades pela vila de Bombiana, do lado brasileiro, e pelo amontoado de casas de pedra que recebera o bucólico nome de Abetaia – “bosque de pinheiros”. Nada mais adequado para um pacato núcleo de habitações montanhesas circundado por árvores. Era a primeira vez em que a pequena aldeia aparecia nas ordens de combate da divisão brasileira.
Da parte americana, o destacamento comandado pelo General Paul Rutledge tinha a missão de conquistar o povoado de Corona, a meia encosta do Belvedere, para depois prosseguir em demanda da crista do monte.
O ataque da Task Force 45 no dia 24 de novembro
A operação foi iniciada com um forte bombardeio de 45 minutos sobre o Monte Belvedere. Quando as granadas fumígenas obscureceram a visão dos postos avançados alemães, o avanço dos carros de combate da 1ª Divisão Blindada começou. Por trás da fumaça, os soldados alemães discerniram o ruído dos motores dos blindados, e as sumárias defesas de Corona se desintegraram perante a infantaria e os carros americanos. Um novo impulso dos americanos apoiado por 18 blindados procedeu com um avanço adicional, que foi detido pelas armas anti-carro empunhadas pela infantaria alemã. O avanço do batalhão de Silvino foi detido pela primeira vez em Abetaia, e as 15:00, os homens receberam ordens de retornar à base de partida. Nesta ocasião, os brasileiros não conseguiram adentrar no casario, principalmente por causa do fogo inimigo que partia de Monte Castello[6].
Vicente Pedroso da Cruz, da 8ª Companhia do 6º RI, descreveu a cena em seu memorável Os Caminhos de um Pracinha:
“Os estilhaços que subiam em vertical, desciam ruidosos como se fossem hélices partidas, viajando a esmo e passavam zunindo sobre nossas cabeças. Deitados, agarrados ao chão, esperamos que a barragem passasse e assim pudéssemos atingir a beira da estrada que ia para o cemitério. O tempo não passava e os alemães pareciam não estar com vontade de mexer nas alças de mira de seus canhões, num troar ensurdecedor”.[7]
Na madrugada do dia 25, às 01:30, nova ordem de operação foi enviada ao Major Silvino. Seu batalhão agora deveria atacar em uma frente ampliada, deixando o setor de Abetaia e passando a atuar a oeste de Monte Castello, partindo de Le Roncole e Gambaiana para tentar escalar a elevação por Zolfo e Fornello.
O dia 25 de novembro
Ao amanhecer do dia 25, o 435º Batalhão Antiaéreo agregado à Task Force 45 conseguiu chegar até a crista do Belvedere, debaixo de fogo de fuzis, metralhadoras e artilharia. Uma vez no topo do morro, os americanos imediatamente escavaram abrigos e passaram a tomar providências para estabelecer um perímetro defensivo. Mas nem tudo corria bem ao longo do ataque: enquanto a infantaria do 370º RI americano avançava apesar do fogo esparso de armas leves, o 6º Regimento brasileiro sofria novamente pesado bombardeio de morteiros e artilharia.
Os canhões das baterias e tank destroyers do 894º Batalhão americano não deixaram por menos: ao longo dos dias 24 e 25, dois mil tiros de todos os calibres castigaram as cotas elevadas ocupadas pela infantaria alemã.
Neste dia de combates, o III Batalhão do 6º RI se chocou com o Kampfgruppe Stöckel. Como parte das tropas do batalhão empenhado no combate, o Pelotão de Petrechos da 9ª Companhia de Fuzileiros do 6º RI partiu para dar apoio na progressão. Entre os atiradores das três peças de morteiro, estava o paulista José Marino.
Avançando junto com os pelotões de fuzileiros, a guarnição de morteiro 60 milímetros de Marino divisou um grupo de soldados alemães que saía de uma casa, dirigindo-se a posições de combate. Aproveitando o alvo, o apontador do morteiro direcionou sua peça para a casa de onde havia saído o grupo de combate alemão. Marino, que era o atirador, deixou a primeira granada cair pelo tubo da arma, e o disparo atingiu pouco mais da metade da distância entre o morteiro e o grupo de combatentes inimigos que se deslocava para uma posição de combate. O apontador da peça regulou a alça de pontaria, e o próximo tiro caiu no meio da esquadra alemã que corria rapidamente. Os brasileiros ainda conseguiram ver o inimigo buscando abrigo nas depressões do terreno.
Quando Marino se preparava para lançar a próxima granada, um dos canhões autopropulsados alemães efetuou um disparo que, passando próximo do pessoal do morteiro, atingiu uma árvore, cortando o tronco ao meio. De imediato, a guarnição se atirou colada ao solo, protegida por uma ligeira depressão. Puderam sentir o calor e deslocamento da segunda granada disparada pelo blindado alemão, que rasgou o ar meio metro acima de suas cabeças[8].
O pelotão do 2º Tenente Gerson Machado Pires, da 8ª Companhia, que avançava pelo flanco de Gambaiana, do lado leste de Monte Castello, deparou-se igualmente com o fogo de um blindado alemão.
Gerson, ao avistar o blindado, ainda conseguiu divisar sua guarnição de uniformes pretos, que se esgueirou agilmente para dentro do veículo ao discernir a tropa brasileira. O oficial brasileiro pôde observar o blindado girando-se e apontando seu canhão na exata direção onde se encontrava seu pelotão.
O soldado que portava o rádio do pelotão, apelidado de “Zé 12”, bateu no ombro de Gerson e exclamou: “senhor tenente, o senhor está vendo essa barba aqui?”
“Tou, tou…”
“Pois eu não sou homem não! Se o senhor quiser correr, vâmo correr!”
“Não Zé, nós vamos ficar aqui mesmo, viu”[9].
Segundo Vicente Pedroso da Cruz, “as balas chegavam numa rapidez espantosa, com seus tiros diretos. Devido à pequena distância das peças, a gente não tinha tempo para raciocinar naquele intervalo entre a partida do tiro e o impacto: dois estrondos sucessivos”.[10]
Era necessária uma decisão ágil para evitar que seu pelotão não ficasse à mercê dos tiros de canhão em campo aberto. Gerson ordenou que o pelotão se abrigasse na vala rebaixada do arroio Liberaccio. As margens do riacho são aprofundadas, mas seu leito dá vau em todos os pontos. Em formação de combate, o pelotão passou a trilhar a subida para seu objetivo de ataque na proteção relativa do barranco elevado do riacho. O pelotão prosseguiu no avanço, mas, ao passar por baixo de uma rústica ponte de pedra construída sobre uma curva do terreno, desembocou em um trecho que oferecia um campo de tiros diretos para o blindado.
A primeira granada do canhão alemão atingiu em cheio os soldados Benedito Patrício, João Inácio do Nascimento e João Moreira Alberto, que recebeu post-mortem a Cruz de Combate de Primeira Classe. Mais dez tiros se seguiram, mas o pelotão conseguiu se resguardar por detrás do barranco do Liberaccio. Imediatamente após o disparo, o fuzileiro Vicente Pedroso da Cruz se aproximou de um dos feridos, que agonizava com massa encefálica exposta, pedindo que os companheiros o matassem para abreviar sua dor, enquanto o sangue dos três homens tingia a água do riacho. Este homem expirou pouco depois, tendo como último pedido a celebração de uma missa quando seu tenente retornasse ao Brasil. Gerson se lembrava que foi a primeira coisa que fez ao chegar em casa.
O III Batalhão do 6º RI tinha insistido na tentativa de avanço, mas não estava preparado para combater contra blindados inimigos. Um dos bazuqueiros do III Batalhão, o Soldado Danton Ramos Vianna, ainda teve ânimo de atirar rojões contra o blindado alemão, antes de largar sua arma e retornar apressadamente e debaixo de fogo à base de partida.
No dia 26 de novembro a 1ª DIE recebeu novas instruções do IV Corpo reforçando a diretiva de capturar Monte Castello. Junto à Task Force 45, os brasileiros teriam que capturar a crista que se estende do Monte Belvedere em direção ao leste, para impedir as vistas do inimigo sobre a Rota 64. O General Mascarenhas prepararia um novo ataque para os próximos dias. A incumbência continuava sendo difícil devido às posições fortificadas de Monte Castello, mas a chance de obter sucesso com a operação seria aumentada uma vez que o flanco de Monte Belvedere não seria origem de problemas para tropa brasileira: a elevação permanecia em mãos da “infantaria” americana da Task Force 45.
Alemães retomam Corona e Belvedere no dia 27.
O ataque alemão que retomou Belvedere teria conseqüências sérias para as próximas operações brasileiras contra o Monte Castello. Como se verá adiante observa-se um estranho desencontro entre a documentação americana, as narrativas alemãs e os registros deixados pelo comandante da divisão brasileira e pelo chefe de seu Estado-Maior, anos depois da guerra.
[1] Mascarenhas de Moraes, 1960.
[2] Paes, W.M. Lenda Azul. Rio de Janeiro: Bibliex, 1991.
[3] 1a Divisão de Infantaria Expedicionária, 1o Esquadrão de Reconhecimento. Relatório.
[4] Ocasionalmente citado na documentação brasileira como “2º Grupo Blindado”.
[5] 6o Regimento de Infantaria, Relatório de Operações.
[6] Kurowski, op. cit.; Boucsein, op. cit.
[7] Pedroso da Cruz, V. Os Caminhos de um Pracinha. São Paulo: edição do autor, 2008, p. 131.
[8] Depoimento de José Marino, São Paulo, 2010.
[9] Gerson Machado Pires, entrevista, São Paulo, 1992.
[10] Pedroso da Cruz, op. cit., p. 136.