Sob o ponto de vista Aliado, ficou claro que a guerra em terreno montanhoso precisava de uma abordagem e preparo especiais. Não só o treinamento, mas o equipamento, armamento, táticas e logística demandavam adaptações que adequassem os recursos Aliados para a luta na Itália. Até então, a maior lição que os Aliados puderam aprender era que a guerra na península havia se provado dificílima, e que os alemães conseguiam compensar sua limitação de meios fazendo magistral uso do terreno acidentado e das terríveis condições climáticas ao reduzir os combates a uma sucessão interminável de enfrentamentos de pequenas unidades de infantaria[1].
Nas escarpas apeninas, os homens se cansavam mais rápido, mesmo que tivessem passado por rígido condicionamento físico padrão das tropas de infantaria. A exposição ao frio ocasionava levas de centenas de homens padecendo por congelamento nos membros locomotores, postos fora de combate e internados nos hospitais de campo[2].
A dificuldade de acesso às posições avançadas nas cristas geladas tornava inútil a amplitude de viaturas das quais dispunham os Aliados: foi necessário recorrer às unidades alpinas italianas do Exército Real, fiel aos anglo-americanos, que sobre o lombo das mulas transportavam rações e munições aos soldados posicionados nos foxholes lamacentos e cobertos por neve. Os combates caracterizaram uma constante guerra de atrito, com dia após dia de ataques frontais contra as elevações que favoreciam os defensores. Tanto o clima quanto a exaustão física e os drásticos números de baixas fizeram com que os Aliados sofressem permanente situação de emergência por falta de homens, especialmente substitutos para as divisões de infantaria que estivessem descansados e bem treinados[3].
No início de 1944, Kesselring dispunha de 23 divisões, com 215.000 homens empenhados na luta no sul da Itália e mais 265.000 em reserva no norte. Depois que o avanço anglo-americano irrompesse na direção de Roma, o planejamento defensivo alemão estabeleceu que a resistência devesse ser empreendida em uma nova linha fortificada ao norte de Florença. Em virtude da conformação mais plana do terreno entre Roma e a cidade de Florença, Kesselring teve grandes dificuldades para conter o ímpeto da progressão Aliada entre junho e agosto de 1944. Para agravar as preocupações alemãs, o cronograma de trabalhos previa que as novas fortificações da mais recente cadeia defensiva, a Linha Gótica, só estariam definitivamente concluídas em dezembro de 1944[4].
No entanto, o esgotamento das divisões de infantaria Aliadas forçou os generais Mark Clark, do V Exército Americano e Oliver Leese, do VIII Exército Britânico, a suspenderem o avanço e promoverem uma fase de restabelecimento e descanso de suas grandes unidades. Esta pausa favoreceu os alemães, que dobraram o ritmo das atividades de construção das fortificações na Linha Gótica [5].
Esta linha de fortificações estendia-se desde a base naval da Marinha Italiana ao sul de La Spezia, cruzava as montanhas do vale do rio Arno e terminava no mar Adriático, ao sul de Rimini, onde as defesas eram mais tênues. Em agosto, o X e o XIV Exércitos alemães já se abrigavam entrincheirados sobre os Apeninos[6].
As condições para a manutenção do esforço Aliado na Itália tornaram-se ainda mais difíceis com o desvio de recursos para teatros de operações considerados prioritários, após a invasão da França pelo Canal da Mancha em junho de 1944 e a operação Anvil, o desembarque na Riviera francesa em agosto seguinte. A campanha da Itália passou a ter importância secundária, tornando-se razão de críticas e debates acalorados entre os historiadores militares, muitos dos quais julgam a empreitada Aliada como um equivocado desperdício de vidas humanas e material, resultando em acusações de falta de imaginação tática da parte de Clark e Leese. Em oposição a tais críticas e contemporizando este severo julgamento, os comandantes Aliados tinham aceitáveis atenuantes substanciados na conformação geográfica italiana e em sua preocupante deficiência logística, que W.G.F. Jackson chamou de “a tirania da Overlord”. Para a relativa felicidade da população do norte ainda sob ocupação alemã, o fato de o Rei Vittorio Emmanuele III ter se bandeado para os Aliados ajudou a evitar que as investidas de bombardeio enviadas contra a Alemanha se repetissem aterrorizando civis e destruindo as regiões industriais ainda sob o tacão nazista e da RSI. Havia, assim, contingências de natureza política constringindo os Aliados de empregarem o bombardeio aéreo com finalidades estratégicas[7].
Depois das campanhas que garantiram a posse de Roma e do vale do rio Arno, os comandantes Aliados na Itália perceberam claramente que a próxima fase da campanha seria tipificada pelas horrendas condições já experimentadas nos combates pelo vale do Liri e Monte Cassino, entre fins de 1943 e maio de 1944: uma vitória rápida e decisiva não seria alcançada, e os soldados do V e do VIII Exércitos teriam que enfrentar o moedor de carne novamente. Os trágicos resultados anteriores de operações ousadas, como a travessia do rio Rápido, haviam motivado uma postura de hesitação da parte Aliada em empreender novas iniciativas táticas agressivas. Os combates de infantaria na Itália foram essencialmente pautados por táticas frontais tradicionais. As unidades especializadas em guerra de montanha poderiam ter sido mais eficazes, no entanto, os Aliados dispunham de poucas divisões com treinamento do gênero. As grandes unidades francesas, as únicas com alguma experiência própria ao combate em terreno montanhoso, foram obviamente deslocadas para a Operação Anvil – não havia sentido em mantê-las na Itália quando seu próprio país passava por uma guerra de libertação[8].
As lições da guerra de montanha
A importância de tropas qualificadas para a guerra de montanha foi ressaltada com a atuação do Corpo Expedicionário Francês nas fases de assalto à Linha Gustav por volta do verão de 1944. Desde a campanha do Norte da África, o General Alphonse Juin já percebera que a influência dos conceitos da Blitzkrieg havia se disseminado entre os Aliados de forma a tornar suas forças demasiadamente mecanizadas e dependentes de estradas.[9] “A mula, e não o Jeep, reinava suprema com fator de mobilidade na Itália”, considerou o historiador Douglas Porch.[10]
Como em toda operação militar, a garantia da cadeia logística era uma das condições de sucesso nos ataques às montanhas do vale Liri. Como em outras fases da campanha italiana, a situação tática favorecia o inimigo, perfeitamente dissimulado em suas posições, dispondo de postos de observação e vasto apoio de morteiros e artilharia, que eram empregados contra os pontos de tráfego que os alemães conheciam de sobejo. Juin percebeu imediatamente que seus suprimentos só seriam adequadamente enviados às linhas de frente por meio das mulas e muares de transporte. “A vitória na Itália seria um caso típico de tropas de montanha capazes de se infiltrar e conquistar posições inimigas levemente defendidas em pontos remotos, com apoio de um sistema logístico de quatro patas que era flexível e dinâmico ao despachar suprimentos para as cristas e picos de montanhas mais distantes”.[11]
A única divisão americana treinada para o combate em montanha chegaria ao teatro de operações do Mediterrâneo a partir de dezembro de 1944, com efetivo só completado em janeiro do ano seguinte. Como se esperava, seu desempenho foi fundamental na Operação Encore, que finalmente arrancou o maciço Belvedere-Torraccia das mãos alemãs em fevereiro de 1945[12].
Apesar de ser reduzida à condição de frente secundária depois da Operação Overlord em 6 de junho de 1944, a campanha italiana perdurou por mais nove meses. Uma das justificativas para sua continuidade com esforços consideráveis foi a imediata constatação de que a guerra na Itália prenderia um número de divisões alemãs àquele país. Em suas memórias, o historiador inglês Sir Michael Howard, que serviu como capitão dos Coldstream Guards, expressou as preocupações dos combatentes Aliados: “ao fim de setembro de 1944 a campanha da Itália chegara a um impasse. Até mesmo eu percebia isso. Da perspectiva da grande estratégia, ela já tinha atingido seu propósito: prender ao solo o maior número possível de forças alemãs até que os desembarques na Normandia obtivessem sucesso. Tínhamos conseguido isso. Não somente isso, mas todo o território soviético havia sido libertado e as tropas russas eram agora despejadas dentro da Europa Oriental. A esperança de que as forças Aliadas na Itália conseguiriam efetuar um avanço relâmpago para chegar até Viena antes dos soviéticos pode ter sido cogitada por Alexander e seu Estado-Maior, mas isso era algo compartilhado por poucos de nós. Oliver Leese pode ter acreditado que seu VIII Exército faria melhores progressões no território mais plano na costa leste da península, embora tenha descoberto rapidamente que os alemães eram tão habilidosos na defesa de rios e canais quanto nas montanhas. Era evidente que iríamos enfrentar outra campanha de inverno, e achamos tal prognóstico deprimente”[13].
Quando o primeiro contingente brasileiro desembarcou em Nápoles, em 16 de julho de 1944, Mark Clark, que àquela altura ainda comandava o V Exército, acolheu festivamente os novos ingressantes. O general americano estava ciente dos potenciais problemas logísticos surgidos da introdução de uma nova nacionalidade em seu exército, agravados ainda pelas possíveis conseqüências diplomáticas na eventualidade da FEB sofrer um número inaceitável de baixas e, em função dessa possibilidade, as relações entre americanos e brasileiros não procederem em bons termos. Apesar do estreitamento na cadeia de suprimentos americana que a FEB iria causar no V Exército, Clark considerou os brasileiros bem-vindos, já que o 6º Regimento de Infantaria e as unidades subseqüentes iriam colaborar para restaurar os recursos humanos criticamente carentes na frente italiana[14].
“Planejamos integrá-los lentamente ao V Exército”, escreveu Clark. “Logicamente, o desempenho dos brasileiros era importante militar e politicamente. O Brasil foi o único país da América Latina a mandar uma força expedicionária para participar da guerra na Europa, e, naturalmente, estávamos ansiosos para dar-lhes todas as chances de se saírem bem. Ao mesmo tempo, havia uma discrepância considerável na qualidade de seu treinamento, e nós sentimos que seria importante ter calma com o seu envio à linha. Sempre estivemos preocupados que um revés com aquela tropa resultaria em uma infeliz reação política nas Américas”[15]. Clark observou o ambiente de cooperação e boa vontade que imperava entre a FEB[16]. Mas havia limitações que nem mesmo o entusiasmo dos brasileiros seria capaz de superar: ao inspecionar um batalhão do segundo escalão recém-chegado à península no final de novembro, o General Clark notou que os soldados estavam insuficientemente agasalhados: “eu comentei isso com o General Mascarenhas, e ele explicou que os homens tinham vindo do Brasil sem os uniformes de inverno adequados ao inverno da Itália. Isto nos causou mais um problema a ser resolvido […] conseguimos fornecer-lhes jaquetas de combate e roupa de baixo para inverno”[17].
Em setembro de 1944, o 6º Regimento de Infantaria, primeira unidade brasileira a entrar em combate, começou a adquirir experiência na linha de frente. Alocados a um setor do front próximo ao mar Tirreno, os expedicionários começaram a tomar contato com os alemães em pequenas escaramuças de infantaria, que tipificaram o combate na península italiana: como sempre, era necessário desalojá-los das montanhas e vilarejos em seu poder. Nesta fase inicial da campanha da FEB na Itália, os brasileiros ocuparam as cidades de Massarosa, Bozzano, Gallicano e Camaiore; conquistaram Monte Prana e avançaram até as montanhas ao norte da cidade medieval de Barga, onde enfrentaram o primeiro sinal de resistência mais decida dos alemães e dos italianos do Exército Republicano. Empenhado no ataque que visava tomar a cidade de Castelnuovo de Garfagnana, o I Batalhão do 6º RI sofreu um agressivo contra-ataque de tropas da 42ª Divisão Jäger, da 232ª Infanterie-Division e de unidades da divisão alpina italiana Monterosa[18].
O Destacamento FEB, formado primordialmente pelo 6º RI sob o comando do General Zenóbio, pôde se beneficiar de um período adicional de treinamento logo ao chegar à Itália. Introduzido de maneira gradual na linha de frente, o regimento também se aproveitou do que, com eufemismo, é chamado de “inoculação de combate”. As companhias e pelotões de fuzileiros dos três batalhões do regimento receberam missões que, aos poucos, aumentavam em grau de dificuldade. Dessa maneira, o 6º RI foi o mais bem treinado e preparado de todos os três regimentos de infantaria que compunham a 1ª DIE. Durante 45 dias de combates, patrulhas e progressões no vale do rio Serchio, o 6º RI sofreu 133 baixas em ação, dos quais 27 praças e três oficiais mortos; 93 feridos e dez desaparecidos, a maioria retornando à unidade depois de amargar meses nos campos de prisioneiros de guerra no sul da Alemanha[19].
As demais unidades chegadas do Brasil infelizmente não puderam dispor da oportunidade de entrar em combate em níveis crescentes de intensidade. Acabariam atiradas sem preparo completo em um setor do front mais ativo do que o vale do rio Serchio[20].
Os escalões remanescentes da divisão brasileira, compostos principalmente do 1º e 11º Regimentos de Infantaria, partiram do píer 13 do porto do Rio de Janeiro no dia 22 de setembro de 1944. Desembarcando no dia 6 de outubro em Nápoles, a 9 os homens seguiram em lanchas tipo LCI (Landing Craft Infantry) para Livorno, de onde foram transportados em caminhões para o acampamento da Quinta Real de San Rossore, nos arredores da marina de Pisa. Neste local, o segundo escalão da FEB recebeu o armamento e equipamento de origem americana, tendo passado por um sumário estágio de instrução e adaptação[21]. Em alguns casos, o armamento só foi recebido na véspera da entrada em linha das unidades, quando o Regimento Sampaio já se encontrava nas imediações do front: o veterano Ruy Leal Campello relatou a chegada das metralhadoras de mão calibre .45 em Lustrola, “das quais não tínhamos, até aquela ocasião, o devido conhecimento”.[22] O vilarejo de Lustrola ficava a poucos quilômetros de distância do front, já encravado nos Apeninos.
[1] Laurie, C.D. Rome-Arno 1944. Washington, D.C.: Center of Military History, 1998.
[2] Wiltse, C.M. The Medical Department: Medical Service in the Mediterranean and minor theaters. Washington, D.C.: Office of the Chief of Military History, 1965.
[3] Gooderson, I. A Hard Way to Make War. Londres: Conway, 2008.
[4] Jackson, op. cit.
[5] Gooderson, op. cit.
[6] Kaufmann, J.E.; Kaufmann, H.W. Fortress Third Reich. Cambridge: Da Capo Press, 2007.
[7] Oliva, G. I vinti e i liberati. Milão: Oscar Storia, 1998.
[8] Fisher Jr., E.F. Cassino to the Alps. Washington, D.C.: Center of Military History, United States Army, 1993.
[9] Porch, D. The Path to Victory. Nova York: Farrar, Straus and Giroux, 2004, p. 523.
[10] Porch, D. idem.
[11] Porch, D., op. cit., p. 524.
[12] Mascarenhas de Moraes, J.B. A FEB Pelo Seu Comandante. São Paulo: IPE, 1947.
[13] Howard, M. Captain Professor. Londres: Continuum Books, 2006. Tradução do autor.
[14] Brown, J.S. Draftee Division.
[15] Mark Clark, Calculated Risk, 1950.
[16] Blumenson, M. Mark Clark. Nova York: Gordon & Weed, 1984.
[17] Mark Clark, op. cit.
[18] Viana, J.S. Anotações Para a História da FEB.
[19] Relatório das Atividades do 6º Regimento de Infantaria, s/d.
[20] Maximiano, C.C. Barbudos, Sujos e Fatigados. São Paulo: Grua Livros, 2010.
[21] Paes, W.M., op. cit.
[22] Campello, R.L. Um Capitão de Infantaria da FEB. Rio de Janeiro: Bibliex, 1999, p. 33.