A estréia do III Batalhão do 11º RI na linha de frente é um dos mais conhecidos exemplos de como algumas das unidades de Infantaria da FEB foram comprometidas em combate sem instrução completa e sem antes poder contar com um estágio de “inoculação”. Quando se menciona o envio do 11º RI às pressas para linha de frente, não se trata de exagero ou força de expressão: a última sessão de instrução foi ministrada ao regimento no dia 26 de novembro em Filletoli, encerrando-se às onze da noite. No dia seguinte, os infantes do Onze foram deslocados para Silla.[1]
O quarto ataque a Monte Castello foi a oportunidade inicial em que as quatro companhias do III Batalhão foram empregadas contra os alemães. Junto às três companhias de fuzileiros e uma de petrechos pesados que compunham a unidade, a Companhia de Obuses regimental também estava entre as frações do Onze que primeiro enfrentaram o inimigo. “Fomos, portanto, designados para conquistar aqueles dois pontos fortes fazendo nosso batismo de fogo como se fôssemos alguma tropa de elite, quando não passávamos de recrutas melhorados com instrução deficiente, sem o período de estágio, completamente exauridos e insones e ainda, sem uma refeição quente”, considerou em suas memórias o Sargento José Alves da Silva, da 7ª Companhia do 11º RI.[2]
O III Batalhão deste regimento recebeu ordem de se dirigir à base de partida às 18:00 horas do dia 28, véspera do ataque. Às quatro da madrugada do dia seguinte, o dispositivo de ataque estava pronto para a ação. A ação do Onze deveria começar às 08:00 da manhã. A vanguarda era constituída pela 7ª Companhia (Capitão Olegário de Abreu Memória), 8ª Companhia (João Manuel de Faria Filho) e Moacir Nunes de Assunção (CPPIII).
Antes de iniciar a operação, os combatentes do Lapa Azul receberam ordens de se desvencilharem de seus capotes americanos e das máscaras contra gases. Pesados em virtude de absorverem muita água da chuva, os capotes seriam mais um empecilho do que proteção contra o frio. Os homens também deixaram para trás suas mochilas cheias, antes de saírem às 08:00 da manhã, que era a hora H do ataque. Quem voltasse vivo poderia recuperá-las depois.
O 2º Pelotão de Fuzileiros da 8ª Companhia tinha à sua frente um prolífico autor. O Tenente Agostinho José Rodrigues, natural do Paraná, publicaria, nos anos 60, uma vívida narrativa do ataque de 29 de novembro contra Monte Castello.
“A distância que nos separava das linhas inimigas era relativamente pequena. Trezentos ou quatrocentos metros, se tanto […] Espiei atento, por alguns instantes, o terreno em frente. A elevação era pequena e o declive suave. Sulcos de terra recém-lavrada recortavam a ladeira até o início do vale. A terra, úmida e fofa, cheirava bem.”[3]
Ao se projetar para a frente em seu primeiro lance, Agostinho foi seguido pelos homens sob seu comando. Ao seu redor, podia ver centenas de vultos deixando a base de partida e correndo na direção dos objetivos de ataque, sob o som das armas leves da Infantaria brasileira. Logo, a Artilharia da FEB passou a bater as elevações premendo a resposta alemã sobre as casas de Bombiana, seguida de granadas de morteiro que visavam os atacantes.
Agostinho tinha à sua esquerda uma cerca viva que terminava em Cá Guidellini. Ele conseguia ver o avanço do I Batalhão do 1º RI com os grupos de combate perfeitamente dispostos em formação de ataque, que progrediam partindo de Le Roncole e Gambaiana.
Agostinho logo se acercou de Lá Cá, dando ordem para que um de seus comandantes de Grupo de Combate vasculhasse a casa, que, junto ao celeiro, estavam abandonados. Nesse momento, uma granada de morteiro atingiu uma das quinas do telhado, sinal evidente de que a tropa brasileira avançava sob os olhos do inimigo e que em breve seria enquadrada após este primeiro tiro de ajuste.
Ultrapassando Lá Cá, os homens continuavam a avançar em lances lentos e curtos. Agostinho agora alcançava o platô à frente de Cá Guidellini. Nenhum de seus homens havia ainda disparado com o armamento, mas o tiroteio já era intenso na direção de Abetaia.
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A 7ª Companhia partiria de Bombiana, tendo Abetaia como objetivo de ataque. Em linha reta, a distância entre os dois vilarejos alcança aproximadamente 800 metros. Antes do início, os fuzileiros estavam abrigados no velho cemitério do vilarejo. Cinco minutos antes da hora H, os alemães passaram a bombardear a posição com morteiros e artilharia. Ossos e crânios voavam sobre os homens que tentavam se proteger entre os túmulos centenários. José Alves da Silva descreveu as primeiras mortes que o Lapa Azul sofreu: “às 08:00 horas em ponto – a hora H – os terceiros-sargentos Francisco de Paula Lopes, de Ouro Preto e o Wilson Ramos, de São João Del Rei, julgando que estivessem participando de um exercício, deixaram juntos seus ‘fox-holes’ – abrigos individuais – quando explodiu uma granada no meio deles, matando-os. O Paula Lopes teve a espinha dorsal cortada ao meio por um estilhaço, escorrendo dele um líquido esbranquiçado, viscoso, e o Wilson Ramos voou pelos ares por mais de dez metros, caindo de joelhos mortinho da silva, sem receber um só estilhaço, devido o forte deslocamento de ar.”[4]
Ernani Ferreira Lopes era comandante de um dos pelotões de fuzileiros da 7ª Companhia do 11º RI, tendo o sargento Wilson Ramos entre seus subordinados. Ele descreveu como “o pessoal do pelotão ficou preso e com medo” logo ao desembocar da base de partida. Impelindo seus homens para a frente, o Tenente Ernani tentava atacar Falfare e a partir daí flanquear Abetaia, objetivo alcançado sob uma progressão cruenta.[5]
Logo após o choque causado pelas mortes dos dois sargentos, os atacantes da 7ª e 8ª Companhias vibraram eufóricos quando os blindados americanos da 1ª DB se aproximaram para apoiar o ataque. Infelizmente, o entusiasmo não foi duradouro: ante os tiros diretos dos canhões de assalto alemães, os blindados americanos romperam a formação e retraíram, deixando a tropa brasileira sem o essencial apoio de suas armas
A 1ª Divisão Blindada era uma unidade veterana, que vinha combatendo desde os estágios iniciais do envolvimento americano na campanha do Mediterrâneo. No dia 29 de novembro, os pelotões empenhados em apoiar a FEB relutaram em prosseguir no avanço. Este episódio do ataque serve de exemplo para a dificuldade de cooperação que ocorre entre tropas de países diferentes que ainda não consolidaram confiança e respeito mútuos. A racionalização básica é “se for para morrer, que seja em auxílio a uma operação desencadeada por meus compatriotas”.
Obviamente, o pelotão de tanques americanos que recuou não o fez sem a confirmação de uma ordem superior. Infelizmente, ainda não foi localizada a origem da permissão para os blindados retirarem o apoio ao ataque brasileiro, mas é certo que ela passou pelo comando da companhia de “tanks” americanos.
A reação dos brasileiros perante essa demonstração de falta de solidariedade dos tanquistas americanos foi de insistir na continuidade da operação, mesmo sem a cobertura dos blindados. “O jeito foi prosseguir no ataque de peito aberto”, escreveu José Alves da Silva, que nos lances iniciais teve a manga esquerda de seu field-jacket perfurada em dois pontos por uma rajada de Lurdinha. Em seguida, Silva testemunhou a morte do 3º Sargento João Soares de Faria, paulista de Lorena, colhido por uma rajada que o atingiu no ventre enquanto atravessa a estrada asfaltada que conduzia a Abetaia. O sargento caiu com as mãos sobre os ferimentos e logo morreu. Logo depois, tiros de artilharia foram solicitados e aquela Lurdinha parou de disparar.
Abetaia foi alcançada pela 7ª Companhia por volta das 14:00 horas do dia 29. “Era um casario construído por grandes pedras, no sopé do Castello, com os alemães furiosos atirando de dentro das casas transformadas em fortalezas. Com formões eles abriram seteiras nas grossas paredes de pedras onde introduziram os canos metralhadoras”. Se precisassem abandonar a posição, as defesas de Abetaia eram ligadas com o complexo principal de Monte Castello por meio de sapas russas – trincheiras de comunicação escavadas em zigue-zague.[6]
O bombardeio brasileiro continuava martelando o vilarejo. À medida que os pelotões da 7ª Companhia do 11º RI se aproximassem, o procedimento combinado era solicitar a suspensão da barragem e iniciar o assalto. Mas esse pedido não foi encaminhado, e os brasileiros foram enquadrados por suas próprias granadas de artilharia. No meio das explosões, um homem conseguiu retrair, conseguindo transmitir o pedido de cessação dos tiros.
Nas proximidades de Abetaia, o Sargento Silva identificou alvos nas janelas de uma casa, e disparou duas granadas de fuzil, que explodiram no interior da construção, enquanto os bazuqueiros de seu pelotão faziam fogo contra as portas das casas fortificadas, que eram seus pontos mais frágeis. Em contrapartida, um estilhaço arrancou uma das pernas do Sargento Antônio Gonçalves Dias, um alagoano. O homem foi socorrido pelo Capitão Olegário de Abreu Memória, o comandante da 7ª Companhia, que lhe aplicou um curativo de emergência.
Tal como no itinerário de ataque dos outros batalhões, o percurso do Lapa Azul foi dificultado pela lama que cobria as rotas de avanço. Ocasionalmente, o lamaçal servia de consolo, ao aparar as granadas de morteiro em sua superfície amolecida e impedir que a espoleta fosse detonada pelo impacto.
Na frente atacada pelo III/11º RI, o cabo paraibano Nilson Costa enxergava adiante seus camaradas, “uns cavando para si abrigos individuais e outros estirados ao solo, protegendo-se das rajadas de metralhadoras e suportando as estonteantes explosões das granadas de artilharia, vindas de ambos os lados. De quando em quando, se levantava um infante e caía mais além, para daí então avançar a um ponto mais à frente”[7]. Nilson comparou os soldados a um grupo de caçadores bem armados, com “facas prendidas ao cinto e os bolsos cheios de granadas de mão”.
Nilson estava entre os homens da CPPIII do Onze que acompanham a progressão de seu batalhão da base de partida. Esta companhia deveria sustentar o ataque dos fuzileiros utilizando as Metralhadoras Browning .30 refrigeradas a água e os morteiros de 81 milímetros.
Entre as rajadas das armas automáticas e os disparos de fuzil, Nilson e seus companheiros puderam discernir o assovio de granadas alemãs: “mal consigo me deitar, eis que a vinte metros do nosso posto, três explosões se fizeram ouvir, jogando lama por cima de nós. Daí por diante o inimigo não nos deixou botar a cabeça do lado de fora da trincheira. De momento em momento, passavam padioleiros conduzindo feridos ou mortos, pondo-os numa encosta de um morro, à esquerda, para daí as ambulâncias os conduzirem aos hospitais. A resistência do inimigo é grande e bem concentrada. Ao meu lado já há um soldado morto em estado irreconhecível, além de um sargento, um cabo e três soldados feridos. Em três pequenos abrigos, feitos às pressas, acham-se entrincheirados doze elementos, dos quais cinco feridos”[8].
Na frente de todas as companhias envolvidas no ataque, era grande o número de feridos e agonizantes. Silvério Lucas, atirador de uma Browning calibre .30 refrigerada a ar da 7ª Companhia do 11º RI, lembrava-se “com muita tristeza o fato de ver um companheiro ser atingido por um estilhaço de granada no abdômen e seus intestinos caírem no chão misturando-se com a terra, e eu não pude fazer nada, não pude socorrê-lo, tive que seguir”[9].
***
À frente de Cá Guidellini, a 8ª Companhia se aproximava da fase de assalto sobre as casas, enquanto as alças do fogo de morteiros alemães se encurtava cada vez mais sobre os homens. O terreno entre La Cá e Cá Guidellini oferece ínfimo abrigo, e Agostinho não conseguiu identificar se as granadas partiam do objetivo preliminar do seu pelotão ou das fortificações sobre o monte. A trinta metros de distância de Cá Guidellini, o tenente sustou o avanço e deu ordem que os soldados calassem suas baionetas. Ao se impulsionar para o lance final do assalto, uma rajada de granadas fumígenas caiu sobre a colina, encobrindo completamente o campo de visão dos alemães.
O pelotão de Agostinho se apossou de Cá Guidellini ainda em tempo de ouvir os cravos de aço das botas dos soldados alemães que, por entre a fumaça, buscavam refúgio nas escavações das primeiras fraldas de Monte Castello. As casas não chegavam a ser fortemente preparadas para defesa, constituindo simplesmente um posto avançado de observação da tropa alemã. De imediato, o pelotão se aferrou ao terreno, com os homens da vanguarda rapidamente ocupando os abrigos individuais rasos deixados pelo inimigo em fuga.
O restante dos soldados tratou de usar as ferramentas individuais para cavocar a proteção que fosse possível no barranco rochoso. Era o suficiente para prover abrigo contra fogo de arma automática, embora todos estivessem completamente expostos aos morteiros. O pelotão se encontrava ainda intacto, no sopé de Monte Castello, sem que tivesse precisado disparar um tiro desde a base de partida. Para a esquerda, o terreno continuava proporcionando visão para o ataque do I/1º RI, em particular a 2ª Companhia que subia em direção ao ponto cotado 803, onde o inimigo construíra uma de suas mais fortes casamatas. De seu abrigo, Agostinho testemunhou os primeiros choques entre os adversários:
“Estava eu a olhar nesta direção, a meio caminho do cume, quando de súbito um magote de soldados, que seguia na frente, bordejando pela direita, mais para o nosso lado, atirou-se de chofre, bradando, ao encontro de uma greta que despontava na base de uma rocha saliente.”
“Um dos soldados – podia ver-se bem que era um preto alto e de compleição atlética, destacando-se do grupo – arremessou lépido pela fresta uma granada de mão, seguindo-se um estouro surdo. De pronto, à boca da casamata emergia um vulto embuçado numa capa impermeável, semelhante a um poncho listrado de cores amarelo e verde, de nuança igual à folhagem seca dos castanheiros, que com as mãos entrelaçadas atrás da nuca suplicava, berrando, apavorado:
–Kamerad!… Kamerad!…”[10]
Mais dois homens saíram da casamata. Um arrastava a perna, possivelmente ferido pelos estilhaços da granada. O soldado brasileiro os conduz ladeira abaixo na ponta da baioneta.
Logo após acompanhar a cena da destruição da casamata, o Tenente Agostinho perdeu seu primeiro homem: o catarinense Hercílio Gonçalves, pego em cheio por uma rajada de metralhadora enquanto dava um curto lance para procurar abrigo no terreno. Sucessivamente, granadas de morteiro caíam sobre Cá Guidellini, algumas sem explodir, forçando o pelotão a permanecer nas posições recém-ocupadas.
Pela direita, uma metralhadora alemã fustigava os soldados. Agostinho sinalizou para que o grupo de tiro do 3º Sargento Castro se deslocasse para a crista atrás de Cá Guidellini. Abrindo fogo com seu fuzil-metralhador Browning, o Soldado Marocco conseguiu silenciar a arma inimiga. Ávido em buscar o contato com o restante da 8ª Companhia, Agostinho enxerga o Capitão Faria bradando para que um grupo de homens avançasse para a posição ocupada pelo segundo pelotão. Ao receber o capitão, inteira-se do fato de que o Primeiro Pelotão foi desarticulado por morteiros logo nos primeiros lances. Agostinho agora recebia um pequeno reforço de homens desgarrados que o capitão conseguira reunir. Um deles trazia uma metralhadora leve às costas. Ordenando ao tenente que se mantivesse preso à posição ocupada, o Capitão Faria retorna para a direção da base de partida em tentativa de organizar mais alguns elementos de reforço.
Um grito de ferido pode ser ouvido entre o bombardeio que martela os arredores de Cá Guidellini. Não tarda para que Sargento Orlando Randi transmita a notícia de que o pelotão agora contava com sua segunda baixa, o Soldado João Batista dos Reis, de Minas Gerais, morto por uma granada que atingiu a beirada de seu abrigo. A terceira baixa é o Sargento Castro, ferido por tiro no tornozelo enquanto comandava o fogo de seu Grupo de Combate contra as armas leves do inimigo.
A Artilharia brasileira continuava batendo as encostas em apoio da tropa atacante. Em algumas vezes, lograva destruir algumas das posições alemãs, especialmente os ninhos de metralhadora escavados a céu aberto. As posições mais reforçadas só seriam postas fora de combate por meio do abandono de suas guarnições, rendição ou pelo assalto direto da Infantaria brasileira.
Em
termos de lembranças infelizes, o dia 29 de novembro certamente marcou os
veteranos do segundo escalão da FEB. Na ocasião da partida do Rio de Janeiro, o
padioleiro Wilson Pedro Speridião, do Serviço de Saúde do I Batalhão do
Sampaio, testemunhara a certeza guardada pelo 3º Sargento Jorge Monçores de que
voltaria vivo ao Brasil. Nos lances iniciais do ataque, um dos primeiros corpos
a ser recolhido por Wilson foi o do Sargento Monçores[11].
No total, os dois batalhões brasileiros sofreram 190 baixas, entre mortos e
feridos, muitos dos quais permaneceram insepultos até fevereiro de 1945. Após o
ataque final no ano seguinte, alguns dos homens foram encontrados em posições
bastante avançadas nas encostas do morro, como o Soldado João Ferreira da
Silva, que pertencia à 3ª Companhia do 1º R.I. e que foi morto no ataque de 29
de novembro.
[1] 11º Regimento de Infantaria, Elaborado pelo Cel. Adhemar Rivermar de Almeida, baseado no “Livro Histórico do 11º RI”. Casa do Expedicionário, p. 5.
[2] Silva, J.A. A Saga de um Catarina na FEB. Florianópolis: edição do autor, 2001.
[3] Rodrigues, A.J. Segundo Pelotão, 8ª Companhia. Rio de Janeiro: EDAMERIS, 1969.
[4] Silva, J.A., op. cit.
[5] Ernani Ferreira Lopes, História Oral do Exército, tomo 5, p. 199.
[6] Silva, J.A., op. cit.
[7] Costa, N. Vida e Luta de um Pracinha. Campina Grande: edição do autor, sem data.
[8] Costa, op. cit.
[9] Pacheco, M., op. cit.
[10] Rodrigues, A.J., op. cit.
[11] Pacheco, M., op. cit.